Mesmo com propostas ousadas, como a de criar uma corte exclusivamente constitucional e a de estabelecer mandatos temporários para ministros, a Constituição Federal de 1988 — que completa 35 anos nesta quinta-feira (5/10) — manteve a forma de organização do Supremo Tribunal Federal do regime militar.
Por outro lado, a ampliação de competências, bem como do rol de legitimados a questionar a constitucionalidade de normas, aumentou o poder do STF. Com isso, passou a caber à corte resolver impasses entre o Poder Executivo e o Legislativo e dar respostas à população em tempos de crise.
Com as Diretas Já e o definhamento da ditadura militar, atores políticos passaram a planejar a volta do Brasil a um regime democrático. Havia um consenso: a nova Constituição deveria fortalecer as instituições judiciais, assegurando a independência financeira e administrativa do Judiciário, conforme apontam Andrei Korner, professor de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas, e Lígia Barros de Freitas, professora de Direito da Universidade Estadual de Minas Gerais, no artigo "O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo".
Os então ministros do STF encaravam com reservas a Assembleia Nacional Constituinte, convocada pela Emenda Constitucional 26/1985. Os integrantes da corte buscavam poupá-la de mudanças profundas e manter a liderança entre os magistrados para propor medidas. Em 1985, o presidente do Supremo à época, ministro Moreira Alves, declarou que o órgão tinha a visão integral do Judiciário, cujos problemas "não se enfrentam com diletantismos, muito menos com experimentações, jamais com os olhos postos no aplauso imediato".
Já o ministro Oscar Corrêa disse que não havia por que convocar a Constituinte, uma vez que não existia ruptura da ordem jurídica. Dessa maneira, segundo ele, bastava reformar a Constituição de 1967/1969. Por sua vez, o ministro Néri da Silveira ressaltou que o STF poderia avaliar a legitimidade jurídica da convocação da assembleia.
Quatro meses após assumir a Presidência da República, José Sarney convocou a Comissão Afonso Arinos, conhecida como "comissão de notáveis", para elaborar um anteprojeto de Constituição. Entre as propostas enviadas ao órgão por ministros do STF, estava a manutenção das atribuições e da forma de organização da corte, além de sugestões de magistrados para o fortalecimento do Judiciário.
O anteprojeto de Constituição concluído pela Comissão Afonso Arinos em setembro de 1986 mantinha o desenho institucional do STF da ditadura, sem grandes mudanças. Porém, Sarney desistiu de enviar a proposta ao Congresso devido às críticas de que ele tinha vínculos com o regime militar, e para evitar uma crise com parlamentares — o então presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães (PMDB-SP), disse que, se recebesse o texto, devolveria-o ao Executivo.
Assembleia Constituinte
A Assembleia Nacional Constituinte foi instalada em 1º de fevereiro de 1987. Houve três propostas sobre a estrutura do STF, segundo informam André Korner e Lígia Freitas em seu artigo. A primeira era a criação do tribunal constitucional ou tribunal das garantias constitucionais — as duas sugestões, que tinham as mesmas bases, foram discutidas em subcomissões diferentes. Seria uma corte com competência exclusiva sobre matérias constitucionais, composta por ministros com mandato, escolhidos pelo Congresso ou pelos Três Poderes em conjunto.
O tribunal constitucional foi defendido pelo deputado Vivaldo Barbosa (PDT-RJ), com base em proposta do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, na Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público. Já o tribunal das garantias constitucionais foi apresentado à Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e das Garantias pelo deputado Lysâneas Maciel (PDT-RJ), inspirado por sugestão do senador José Paulo Bisol (MDB-RS).
A segunda ideia era criar, no Supremo, uma seção especializada em questões constitucionais, que seriam examinadas por oito ministros temporários, indicados pelo Executivo e pelo Legislativo. Ao mesmo tempo, o STF, com seus 11 ministros indicados pelo presidente da República (sendo pelo menos quatro deles magistrados de carreira), manteria suas demais atribuições, como a de unificação da legislação federal. Elaborado pela Associação Paulista de Magistrados, o projeto foi apresentado pelo deputado Michel Temer (PMDB-SP) na Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público e tinha o apoio do presidente do órgão, deputado José Costa (PMDB-AL).
A terceira proposta era não alterar a organização e as competências do Supremo. Ou seja, a corte permaneceria sendo um tribunal constitucional e de cassação — além de ter a atribuição de julgar ações penais contra autoridades com foro por prerrogativa de função—, com ministros sem mandatos (isto é, com aposentadoria compulsória aos 70 anos). A sugestão foi apresentada à Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público pelo senador Maurício Corrêa (PDT-DF) — que, posteriormente, seria indicado ao STF pelo presidente Itamar Franco. A ideia havia sido defendida em audiência pública pelo ministro do Supremo Sydney Sanches, pelo ministro da Justiça, Paulo Brossard — que também integraria a corte no futuro —, e pela Associação dos Magistrados Brasileiros.
Houve diversas idas e vindas na Assembleia Constituinte quanto às propostas sobre o STF. O projeto de criação de uma seção constitucional dentro da corte chegou a ser aprovado. Porém, foi posteriormente revogado no anteprojeto do deputado Egídio Ferreira Lima (PMDB-SE), com a manutenção da estrutura vigente do Supremo — mas com 16 ministros, com mandatos de 12 anos, sem recondução.
Também houve questionamentos quanto à legitimidade para mover ação direta de inconstitucionalidade no STF. Os ministros da corte e o governo Sarney defendiam a continuidade do modelo da ditadura, em que apenas o procurador-geral da República tinha tal competência. Por outro lado, a OAB e a AMB eram favoráveis a que qualquer pessoa pudesse acionar o Supremo.
Na Comissão de Sistematização, as negociações entre os dirigentes da Assembleia Constituinte e o STF se intensificaram, e dispositivos polêmicos sobre o tribunal passaram a ser alterados. A criação da corte constitucional foi deixada de lado, e o número de ministros foi reduzido de 16 para 11.
Talvez o último ponto polêmico a ser levantado tenha sido a "avocatória", incluída no primeiro substitutivo do relator-geral da Constituinte, Bernardo Cabral (PMDB-AM). O mecanismo, criado durante a ditadura, permitia ao Supremo, verificado o "imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas", suspender, mediante requerimento da Procuradoria-Geral da República, os efeitos de decisões proferidas em quaisquer juízos ou tribunais do país. Contudo, a medida foi removida em Plenário.
O texto final da Constituição Federal de 1988 preservou o STF como cúpula do Judiciário, bem como sua forma de organização, com ministros com mandatos até os 70 anos, livremente escolhidos pelo presidente da República e sujeitos à aprovação do Senado.
Com relação às atribuições da corte, a atuação política de ministros na Constituinte foi parcialmente bem-sucedida, segundo André Korner e Lígia Freitas. Afinal, foi mantida "a combinação de instrumentos de controle concentrado e de controle difuso da constitucionalidade de normas, com acesso parcialmente ampliado, e, ainda, a não previsão do controle concentrado da legalidade de atos do Executivo".
"Porém, contrariando a posição desses ministros e acolhendo as demandas de entidades e associações de juristas, a Constituinte decidiu pela criação do Superior Tribunal de Justiça com poderes de garantir leis federais e de uniformização da jurisprudência e pela eliminação dos principais instrumentos de concentração de poderes no tribunal, criados pelo regime militar: a avocatória, a interpretação de lei em tese, a arguição de relevância e o Conselho da Magistratura. Enfim, contrariando posições mais gerais entre os conservadores, ampliou a gama de direitos fundamentais e criou novas garantias para sua eficácia", ressaltam Korner e Freitas.
Presidente do STF na data de promulgação da Constituição — 5 de outubro de 1988 —, o ministro Rafael Mayer explicou, em entrevista de 2008, como a criação do STJ se refletiu no dia a dia do Supremo:
"Antes do STJ, o Supremo acumulava as funções de julgar as matérias infraconstitucionais e constitucionais. Com a criação desse tribunal superior, as questões infraconstitucionais passaram para a esfera do STJ, o que alterou em muito as competências da Corte Suprema. Podemos dizer que o STJ é um desdobramento do Supremo, com uma importância enorme. O STJ saiu das entranhas do STF, tanto isso é verdade que, no período de transição, os dois funcionaram num mesmo prédio".
Explosão de direitos
Em comparação com a Constituição de 1967/1969, o Supremo Tribunal Federal não recebeu alterações substanciais em sua estrutura e organização pela Constituição de 1988, conforme aponta Ingo Sarlet, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Foram mantidos o número de ministros (11), sua forma de nomeação e os requisitos para ocupar o cargo.
No entanto, apesar de terem sido conservadas, de forma geral, as competências previstas na Constituição da ditadura militar — que foram muitas vezes sufocadas pelo governo —, o STF sofreu "transformações de grande vulto" com a nova Carta Magna, que acabaram por "determinar uma série de desenvolvimentos altamente significativos" ao longo dos 35 anos de vigência do texto, ressalta Sarlet.
"Destaca-se aqui o fato de que, por dicção expressa do texto constitucional, o STF passou a assumir o papel de guardião da Constituição, o que, embora já estivesse no escopo de sua atuação desde o final do século XIX, tomou uma dimensão nunca antes vista. É possível afirmar que, com a Constituição, o STF passa a incrementar também funções típicas das cortes constitucionais de matriz austro-germânica, muito embora não possa a elas ser equiparado por várias razões. Indicativo do fortalecimento de seu papel como guardião da Constituição é a ampliação dos instrumentos de controle concentrado e abstrato de constitucionalidade (inclusive por omissão) e do espectro de legitimados para acionar a corte, que, aliás, é um dos mais amplos dos quais se tem conhecimento", avalia o professor.
A Constituição Federal de 1988 "mudou o Supremo da água para o vinho", afirma Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá. Segundo ele, a corte passou a ter mais poderes e mais competência. E, aos poucos, foi "tomando gosto" pelo ativismo judicial, decidindo em questões nas quais a competência deveria ser do legislador.
Porém, o STF não age de ofício, ressalta Streck. Alguém pede, e a corte tem de decidir. "Se temos o 'presidencialismo de coalisão', temos uma espécie de 'judiciariocracia de coalisão'. O STF atende a demandas assumindo funções do Executivo e do Legislativo, como demarcação de terras indígenas, cotas raciais, uniões homoafetivas, (interrupção da gravidez de) fetos anencéfalos, regulamentação de precatórios, medidas provisórias, questões federativas. Por vezes isso interessa ao Legislativo, porque não quer lidar com a matéria. Por vezes provoca reações (backlash) do Legislativo, como está sendo agora nos casos do marco temporal, das drogas e do aborto."
A Carta Magna de 1988 concebeu o Supremo como um órgão imparcial, neutro politicamente, para servir de "guardião da Constituição" — que estabeleceu um Estado democrático de Direito de forma detalhista —, destaca Manoel Gonçalves Ferreira Filho, professor emérito de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo.
Trinta e cinco anos depois, o STF, segundo Ferreira Filho, é visto como politizado e considerado por muitos um poder político, embora não se enquadre no artigo 1º, parágrafo único, da Constituição, que tem a seguinte redação: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".
"A função legítima do STF não é partilhar a governança que cabe aos dois outros Poderes, o Legislativo e o Executivo — poderes políticos no pleno sentido do adjetivo —, mas proteger tecnicamente a supremacia da Constituição e das leis, conforme, aliás, reclama o Estado de Direito", analisa o constitucionalista.
Nos últimos tempos, marcados pela anormalidade — tendo em vista a epidemia de Covid-19 e os atos antidemocráticos de bolsonaristas —, o Supremo, "se não altera o texto escrito da Constituição, pois não é poder Constituinte, dá às normas constitucionais o sentido e o alcance que melhor lhe parece", diz Ferreira Filho. Dessa maneira, aponta ele, a corte vai além de sua competência estrita, "edita decisões normativas que equivalem na prática a leis, o que cabe ao Legislativo, e determina políticas públicas, o que cabe ao Executivo".
Controle de constitucionalidade
A Constituição de 1988 criou institutos para efetivar os direitos fundamentais, como o mandado de injunção, o Habeas Data e a arguição de descumprimento de preceito fundamental. E aumentou o rol de legitimados a propor ação direta de inconstitucionalidade no STF — a competência exclusiva do procurador-geral da República, existente desde a Carta Magna de 1946, foi estendida a diversas autoridades, partidos políticos e entidades de classe.
Como conta o ministro do Supremo Gilmar Mendes em seu livro Jurisdição Constitucional, o modelo de controle de constitucionalidade vigente desde a Carta Magna de 1988 — com suas reformas — não nasceu a partir de grandes contribuições doutrinárias, mas, sim, de problemas concretos resolvidos pelo STF.
A rigor, a possibilidade de discutir a constitucionalidade de leis nasceu com a Constituição da República de 1891. Naquele texto, contudo, só havia a exceção de inconstitucionalidade, por meio do qual um juiz podia deixar de aplicar uma lei que entendesse inconstitucional.
Foi numa dessas exceções que o Supremo concedeu Habeas Corpus ao juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima, que declarara inconstitucional a reforma do Judiciário decretada por Júlio de Castilhos, presidente do Rio Grande do Sul. Foi quando o STF absolveu o juiz do "crime de hermenêutica", conforme a argumentação de seu advogado, Rui Barbosa.
Na Assembleia Nacional Constituinte de 1891, os deputados João Pinheiro da Silva (MG) e Júlio de Castilhos (RS) chegaram a propor que o Supremo pudesse fazer o controle prévio das intervenções federais nos estados por alegada ofensa da região às regras da União.
A Constituição de 1934 abraçou a proposta e criou a representação interventiva. Por meio dela, o STF avaliava a constitucionalidade das intervenções federais, que só podiam ser decretadas em caso de ofensa a "princípios sensíveis".
A Carta Magna de 1946 modificou o instrumento para determinar que, em vez de analisar a constitucionalidade da lei que decretava a intervenção, o Supremo deveria avaliar, em abstrato, se as leis estaduais estavam de acordo com a Constituição Federal.
Um ano depois da nova Constituição, o Supremo julgou a Representação 94 e decidiu que a representação interventiva era, na verdade, uma forma de controle abstrato de normas, e não de controle incidente da constitucionalidade de leis estaduais. O caso concreto era o de uma emenda à Constituição do Rio Grande do Sul que transformava o estado em parlamentarista. O Supremo decidiu que a norma era inconstitucional por desrespeitar o princípio da separação dos poderes descrito na Constituição Federal.
Em seu livro, Gilmar Mendes — que é professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) — destaca que, entre 1946 e 1965, foram apresentadas mais de 500 representações ao STF. Os números, para o ministro, comprovam que o instrumento nunca foi usado para discussões federativas, mas, sim, para o controle da constitucionalidade das leis. No mesmo período, segundo análise de Gilmar, o procurador-geral da República sempre enviou ao Supremo os pedidos de representação que recebeu. Se não concordasse, dava parecer contrário à representação — o germe da ação direta de constitucionalidade, segundo Gilmar Mendes. No parecer que deu origem à proposta que se transformou na ação direta de inconstitucionalidade da Constituição de 1988, o então procurador-geral da República, Sepúlveda Pertence, também se reportou a esse caso.
Em 1965, já após o golpe militar, foi aprovada a Emenda Constitucional 16, com a reforma do Judiciário. Entre outras coisas, criou a ação direta de inconstitucionalidade, com o mesmo rito da representação interventiva, mas destinada a discutir a constitucionalidade de leis sem necessidade de um caso concreto — e sempre dando competência exclusiva ao PGR. A intenção foi gerar "economia processual" e permitir que o Supremo decidisse logo, sem sobrecarregar a demanda dos tribunais locais, conforme consta da Proposta de Emenda à Constituição 6/65.
Em sua obra, Gilmar explica que, embora os métodos fossem os mesmos, a representação interventiva e a ADI eram essencialmente diferentes. A primeira destinava-se a questões federativas e pressupunha interesse da União. A última, "à defesa geral da Constituição contra leis declaradas inconstitucionais", ainda que sem nenhum interesse específico, afirma o ministro. E, como a competência era exclusiva do PGR, ele virou um "advogado da Constituição".
O Regimento Interno do Supremo adotava o mesmo rito processual para os dois institutos. Foi a jurisprudência da corte que os diferenciou e estabeleceu que a ADI era um "processo objetivo", sem interesses subjetivos em discussão.
A partir de 1970, começou a discussão sobre a legitimidade para a propositura de ADIs. A Constituição de 1946 criou a competência exclusiva do PGR, que foi mantida tanto pela Constituição de 1967 quanto pela Emenda Constitucional 1, de 1969, ambos instrumentos jurídicos do regime militar.
O MDB, em 70, oficiou o PGR, Xavier de Albuquerque, para que questionasse a constitucionalidade do decreto-lei que estabeleceu a censura. Ele se negou a fazê-lo, alegando que não estava obrigado a oficiar o Supremo contra leis que considerasse constitucionais. Uma reviravolta na tese até então vigente, de Themístocles Cavalcanti, ex-PGR e naquele momento ministro do STF, de que a representação de constitucionalidade deveria ser levada ao Supremo sempre que a Procuradoria-Geral da República fosse notificada. Para ele, isso faria parte de suas funções como "representante da sociedade".
Diante da recusa, o MDB ajuizou uma reclamação afirmando que Albuquerque havia usurpado a competência do STF para julgar a constitucionalidade de leis (Reclamação 849). Sua resposta, para o partido de oposição ao governo militar, implicava julgamento prévio da conformidade da censura com a Constituição.
Xavier de Albuquerque e o governo ganharam. Em março de 1971, o Supremo decidiu que cabe ao PGR decidir "se e quando" arguirá a inconstitucionalidade de alguma lei perante o tribunal. "Poucas questões suscitaram tantas e tão intensas discussões", escreveu Gilmar Mendes. O ministro Themístocles, embora defendesse tese contrária, acompanhou o relator e votou com o governo. Já o ministro Celso Bastos apresentou a "tese média" de que o procurador-geral só fosse obrigado a ir ao Supremo se fosse representado por órgão público.
Adaucto Cardoso foi o único vencido. Segundo ele, a Lei 4.337/1964 estabeleceu a obrigação do PGR de arguir a inconstitucionalidade de leis sempre que representado por "qualquer interessado". Luís Gallotti respondeu que a lei autorizava o procurador-geral a não fazê-lo, ao que Adaucto respondeu que recebia o argumento "com melancolia".
"De janeiro de 1970 até hoje, não surgiu, e certamente nem surgirá ninguém, a não ser o partido político de oposição, que a duras penas cumpre seu papel, que se abalance a arguir a inconstitucionalidade de decreto-lei que estabelece a censura prévia", declarou ele. O ministro Gallotti respondeu que as empresas e a sociedade civil também poderiam fazê-lo, ao que Adaucto o chamou de otimista e lamentou não compartilhar do mesmo sentimento.
Antes de ser ministro, Adaucto fora deputado pela Arena, o partido de sustentação do governo militar. Era visto com desconfiança pela ala radical dos militares, mas, quando presidente da Câmara, demonstrou apoio às políticas da ditadura. No episódio da constitucionalidade da censura, acusou os colegas do STF de atuar como procuradores-gerais, e não como juízes — na época, a tradição era que PGRs fossem indicados ao Supremo.
Revoltado com o resultado, o ministro Adaucto Cardoso deixou o Plenário para nunca mais voltar. Jogou a toga sobre a cadeira e se aposentou.
Mas, de acordo com o ministro Gilmar em um discurso de homenagem, Adaucto Cardoso estava certo "não só no plano histórico, mas também nos planos teórico e dogmático". "Preocupou-se, substancialmente, em garantir o exercício amplo da jurisdição desta corte em um momento delicado da vida nacional, em que o exercício da política, em modo amplo, encontrava-se estrangulado", discursou o atual decano do STF.
A grande questão é que o papel do procurador-geral no controle de constitucionalidade não foi deixado claro na Emenda Constitucional 16. O texto dizia que cabia ao Supremo julgar "a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, encaminhada pelo procurador-geral da República".
No entanto, o parecer pela aprovação da PEC que deu origem à emenda deixava claro que a intenção do texto era acelerar o processo de análise da constitucionalidade de leis, e não obrigar o PGR a derrubar leis por inconstitucionalidade.
Não seria necessário que o PGR estivesse convencido da inconstitucionalidade, apenas que houvesse debate em torno da validade da lei frente ao texto constitucional, explica Gilmar no livro. Prova disso, argumenta ele, é que o Regimento Interno do Supremo, no artigo 174, incluído em 1970, autorizava o procurador-geral a encaminhar a representação por inconstitucionalidade com parecer contrário.
A Constituição de 1988 deu razão a Adaucto Cardoso e chancelou a importância desse jurista no cenário histórico constitucional brasileiro, avalia Gilmar Mendes em artigo sobre o episódio publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico. Isso porque a Carta Magna ampliou o direito de propositura da ação direta de inconstitucionalidade e desenvolveu a ação declaratória de constitucionalidade como uma autêntica ação direta de inconstitucionalidade com "sinal trocado".
Por isso, o decano do Supremo diz que não há exagero em afirmar que, com o caráter de denúncia de seu voto e sua aposentadoria em protesto, Adaucto Cardoso passou a ser um dos pais fundadores do processo constitucional brasileiro. Afinal, um dos pilares do ramo está na abertura da legitimação no processo de controle abstrato de normas.