NÃO EXISTE LEGITIMIDADE NA OCUPAÇÃO DAS RUAS POR JAIR MESSIAS BOLSONARO
(Foto: REUTERS/Ricardo Moraes | Reprodução)
Aprendemos com o Direito Achado na Rua[1] acerca – também – do sentido de legitimidade quanto ao uso do espaço social em que, na metáfora, contudo, evidentemente no lugar fático, a “Rua” serve ao exercício – de direitos – humano, neste particular, à sociedade/à coletividade[2] em busca da emancipação, efeito libertador da liberdade.
Antes de avançar, esclareçamos a última sentença do enunciado acima. É que liberdade é valor supremo, mas também subjetivo, filosófico, ontológico. E liberdade pode significar tanta coisa e se distribuir em tantas nuanças da vida (humana) que, neste quadrante, é oportuno apresentar um sentido mais concreto para o que denominamos por liberdade.
Para melhor exemplificar: uma mulher negra, mãe solo, moradora de uma comunidade periférica (talvez a favela do Sol Nascente, em Brasília), pode ser livre e não ser livre. Isto é, tem direito de ir e vir; andar para onde quiser sem que seja inibida por alguma forma de constrangimento objetivo (tipo: ser presa; ou ser parada sem motivo pela polícia). Todavia, a mesma mulher não é plenamente livre porque lhe falta, entre tantas necessidades, um trabalho digno ao lado de sua casa (imaginemos que essa mulher pegue 4 conduções para ir e vir de seu trabalho e isso consuma dela 4 horas de seu dia). Falta também acesso à saúde plena e a seus filhos. A educação não lhe foi oferecida na juventude – por condições adversas. E seus filhos têm acesso a um ensino mediano. Nem sei se sua casa carrega as variantes dignas de se morar: é de madeirite ou alvenaria? Tem água encanada? Usa fossa ou tem acesso à rede esgoto?
Poderíamos passar horas escrevendo o conjunto de direitos que esta mulher tem inscritos na Constituição Federal do Brasil, mas que não se realizam em sua vida porque somos um país de excluídos, de oprimidos, de vulnerabilizados; o lugar em que reina a desigualdade. Logo, a mulher é livre, porém, sequestradas as suas condições de ser uma pessoa plenamente emancipada.
O Direito Achado na Rua vem discutir (teórica e politicamente) e também lutar para que a “Rua”[3], lá onde se sabe que existe o Direito e onde se reivindica sua mobilização, realização, efetivação, seja ocupada por sujeitos legitimados, isto é, aqueles que são vítimas das relações cruentas de dominação e espoliação. Em linhas resumidas, a Rua é lugar de (se) lutar por direito, em todos os seus sentidos humanísticos-emancipatórios.
É claro que não se pode dizer que um grupo de empresários ultrarricos não possa ocupar a Rua para protestar, lutar por algo. Contudo, é este “algo” que precisa fazer sentido para dar legitimidade. Por exemplo: estes empresários lutam por um sistema de saúde cada vez mais potente e inclusivo? Lutam para que as relações de trabalho e os modos de produção, logo, o lugar de sua fábrica, de seu latifúndio, de sua empresa, seja justo, tanto na partilha dos excedentes, como na equidade da remuneração e na mitigação do acúmulo de riqueza concentrada?
Segurança: um tema que é muito caro aos empresários. Imaginemos que estes foram às ruas brigar por esta causa. É justo que lutem, contudo, indaguemos: oferecem as condições de segurança material a seus empregados? O tipo de segurança que buscam mudança na política (gestão, leis etc.) é a segurança para seus condomínios, seus edifícios, seus helicópteros, suas fazendas, ou a segurança que não trate as ruas das favelas como rios de sangue da seleção capitalista que enxerga sujeitos “periféricos” como subumanos, ou sub-categoria de cidadãos? Portanto, se esta for a causa da ocupação das Ruas – por estes senhores – cremos, não há legitimidade.
A Rua, agora ocupada para defender quem afronta o estado de coisas da Justiça, dos Direitos Humanos, da Democracia, tem – os indivíduos que a ocupam – a legitimidade que tentamos até aqui discutir? Isto é, pessoas que, sob o pretexto de alegar perseguição política (que pode ser real, a depender, ou não), entretanto, que estão na ponta da pirâmide das classes/órgãos, e que atentam contra a vida da maioria da população, seja por se omitir quando têm o poder e a obrigação constitucional de realizar tarefas fundamentais para salvar vidas e não o fazem, e/ou atentam contra a última ponta de esperança que sobra aos sujeitos legitimados primeiros (os que citamos – os que sofrem – no começo do texto), a saber, a Democracia e o Estado Constitucional de Direito, podem ir às Ruas bradar alguma luta legítima?
O que tentamos, didática e ludicamente mostrar aqui é que NÃO EXISTE LEGITIMIDADE NA OCUPAÇÃO DAS RUAS POR JAIR MESSIAS BOLSONARO[4]. Seu interesse é unilateral. Ainda que fosse um direito individual, teria sim a legitimidade de ocupar (e chamar os seus) para lhe defenderem. O que coloca a pá de cal neste caráter do legítimo (ou ilegítimo) é o objeto, a causa da ocupação das Ruas: reiterar uma tentativa de Golpe de Estado. Sim, Bolsonaro não está lutando por saúde, por moradia, por emprego justo às pessoas. Ele quer apenas escapar das “mãos” da Justiça por seus crimes cometidos – e já provados; embora não julgados ainda.
Por conseguinte, se Bolsonaro chama as pessoas para defender posições criminosas de sua individualidade perversa, está reincidindo em conduta delituosa contra o Estado de Direito. É usar a Democracia para destruir a Democracia. Logo, não tem legitimidade[5]; e deve ser barrado!
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[1] Trata-se de uma corrente de estudos do Direito criado na Universidade de Brasília (UnB) e que reúne centenas de pesquisadoras/es, seja na elaboração das epistemologias críticas do Direito, seja no assessoramento das pessoas que demandam por direitos, seja na elaboração de propostas emancipadoras para as políticas públicas e jurisdicionais.
O projeto foi idealizado pelo professor Roberto Lyra Filho; e é liderado/coordenador nas últimas três décadas pelo professor José Geraldo de Sousa Junior, que foi reitor da UnB.Ver melhor sobre o assunto na página do Coletivo que trabalha o Direito Achado na Rua: https://odireitoachadonarua.blogspot.com/p/fotos.html.
[2] Mas não somente. Se se prova a violação de um direito fundamental do indivíduo, e se existe a extensão de causa à coletividade, deve ser defendido na Rua este direito.
Fato que não se aplica ao Bolsonaro, pois o objeto de sua convocação é um falsete, uma falácia e não um direito.
[3] Lembrado que, se a Rua é aqui também a metáfora, pode ser qualquer lugar de luta: um quilombo; uma aldeia; um lugar outro que se suponha espoliação e reivindicação pelo fim da opressão.
[4] Falamos da manifestação que o ex-presidente convoca para dia 25/02/24, na Avenida Paulista, em São Paulo.
[5] Deixemos clara esta ressalva: quem oferece caráter de legitimidade às manifestações é a Constituição Federal, em vários de seus dispositivos, neste particular, o Art. 5º, § XVII, que assim declara: “é plena a liberdade de associação PARA FINS LÍCITOS, vedada a de caráter paramilitar” (grifo meu). Vale ainda analisarmos o Artigo 20, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, in verbis: “Art. 20: Todo o homem tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas”. Ao Direito Achado na Rua, de sua raiz epistemológica, tiramos apenas a interpretação do conteúdo (qual seja, o fator “Rua”, como lugar donde jorra o – que é – direito). Quanto à ilegitimidade de Bolsonaro e seus “convidados”, em sentido concreto, leiamos o que diz o Código Penal brasileiro: “Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: / Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência”. Além do mais grave de todos que é a TENTATIVA DE GOLPE DE ESTADO, previsto no Art. 359-M, da mesma norma da República. Além disso, Bolsonaro vem ao longo dos anos (e não fará diferente no dia da “sua” manifestação), descumprindo praticamente TODO O ROL da Lei n° 1.802/1953, que “Define os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social”, especialmente, ao que tudo vem se apresentando, o que aqui trazemos: “Art. 4º Praticar: / I - atos destinados a provocar a guerra civil se esta sobrevém em virtude dêles; / Pena: - reclusão de 3 a 8 anos aos cabeças, e de 2 a 6 anos aos demais agentes. (…) Art. 11. Fazer públicamente propaganda: / a) de processos violentos para a subversão da ordem política ou social; / Pena: reclusão de 1 a 3 anos”.
Bolsonaro ainda não conseguiu uma guerra. Mas é melhor não subestimarmos uma convulsão social, ainda que ilegítima de moral.
Este artigo não representa a opinião do Blog e é de responsabilidade do colunista Marconi Moura de Lima Burum. Mestrando em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB, pós-graduado em Direito Público e graduado em Letras. Foi Secretário de Educação e Cultura em Cidade Ocidental. Trabalha na UEG. No Brasil 247, imprime questões para o debate de uma nova estética civilizatória