Ninguém é neutro na guerra

 Big techs sempre tomaram posições, só não deixavam isso claro.

Até esta semana, por 10 euros – cerca de 60 reais – qualquer pessoa podia comprar na Amazon uma caneca estampada com o símbolo do Batalhão Azov, grupo extremista paramilitar ucraniano. Não é só um souvenir com um símbolo político agora popular por causa da guerra: é também o símbolo de um grupo ultranacionalista de direita, que reproduz os símbolos e a ideologia neonazistas, como o supremacismo branco e o ódio a judeus. 

Apesar de figurar na lista de "Organizações Perigosas" – e, por isso, estar banido do Facebook desde 2019 –, o Batalhão Azov também conseguiu, temporariamente, o aval da rede social para receber elogios. Assim, o Facebook abriu uma exceção em suas políticas de moderação para que usuários possam elogiar o grupo extremista – porque ele está do lado contrário ao da Rússia. Quer dizer: pode vender produtos com símbolos neonazistas e pode elogiar neonazistas, desde que eles lutem contra o mesmo inimigo que nós. 

Mais que qualquer outro evento recente no mundo, a guerra na Ucrânia obrigou as gigantes de tecnologia a se posicionarem. Em um momento em que um país é atacado de forma violenta e desproporcional, sua população é obrigada a fugir, batalhas e mortes são transmitidas em tempo real e a guerra de narrativas e desinformação transforma os feeds em campos de batalha, o discurso de "somos apenas uma empresa de tecnologia" foi fulminado pela realidade. Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, Google, TikTok e Amazon não são apenas os meios neutros pelos quais as pessoas conversam e se conectam, mas também os editores da realidade. 

Eles estão decidindo neste momento se os vídeos brutais dos ataques russos devem ganhar o mundo, se os imigrantes africanos negros barrados nas fronteiras podem publicar seus relatos, se imagens de corpos de soldados russos devem permanecer no ar, se o ataque a uma usina nuclear pode ser transmitido ao vivo e se a mídia estatal russa deve poder propagar sua narrativa livremente. As redes se tornaram, também, campos de batalha.

Com a guerra, naturalmente, as gigantes da tecnologia foram pressionadas a agir rapidamente para tentar coibir a desinformação e pressionar a Rússia. As consequências vieram: o Google interrompeu a monetização e removeu a RT e a Sputnik, veículos estatais russos, das primeiras páginas de seus serviços de notícias. A Meta, o novo nome do Facebook, também restringiu RT e Sputnik na Europa e desmonetizou os canais no mundo inteiro. O Twitter cancelou os anúncios relacionados à Rússia e à Ucrânia. O TikTok também deixou RT e Sputnik inacessíveis na Europa. E a Apple decidiu suspender a venda de seus produtos na Rússia, entre outras medidas. 

Essa é, afinal, como avaliaram dois repórteres do New York Times, a maior oportunidade que as big techs têm para melhorar reputações abaladas por sucessivos escândalos nos últimos anos. Uma maneira de mostrar que suas tecnologias podem ser usadas para o bem, a liberdade, a democracia e o empoderamento individual, mensagem vendida nos protestos da Primavera Árabe, em 2011, e comprada por todo o Ocidente. 

É suficiente? Muita gente diz que não. Entidades como Sleeping Giants e o The Real Facebook Oversight Board, um grupo de especialistas críticos à rede social, defendem que a mídia russa seja banida e que contas que glorifiquem agressões ou crimes de guerra sejam suspensas. Também afirmam que as empresas devem ser transparentes sobre os recursos de moderação que empregam em países não falantes de inglês – hoje, ninguém sabe ao certo quantos moderadores estão trabalhando especificamente no contexto da guerra. Sabemos só que está sendo ineficiente: um estudo já mostrou que a rede social falha em banir 91% das propagandas russas relacionadas à guerra.

Vale lembrar que, até poucos dias atrás, Vladimir Putin podia propagar suas mensagens livremente no YouTube, e os canais russos ainda eram remunerados por isso (o Google também ganhava com os anúncios veiculados nos canais estatais). Foi preciso que eclodisse uma guerra violenta para as big techs assumirem abertamente o que são: canais de comunicação, enormes e poderosos editores da realidade, usados não apenas por democracias liberais e suas alegadas liberdades, mas também por autocratas tiranos.

A eleição de Donald Trump, a crise da Cambridge Analytica, o Brexit, o genocídio em Myanmar, a eleição de Jair Bolsonaro e de outros extremistas de direita, a epidemia de desinformação e mentiras na pandemia de covid-19: não faltam exemplos de como as redes sociais estiveram no centro de crises geopolíticas e nas ameaças à democracia, com consequências catastróficas para populações inteiras. 

No entanto, apesar de frequentemente alertadas sobre seus papéis nesses cenários, as big techs mantinham uma postura cínica: limitavam-se a dizer que defendiam a democracia, os direitos humanos e que tinham regras internas de uso e moderação. Mas há um problema crônico de falta de moderação qualificada, e a mera exibição das regras é insuficiente para garantir que as plataformas possam alegar que não têm responsabilidade sobre os conteúdos que difundem. Já denunciamos no Intercept muitos e muitos casos de conteúdos que flagrantemente violavam os termos de uso mas permaneciam no ar. 

É porque, embora possam ajudar a passar a imagem de neutralidade, esses termos não são leis escritas em pedra. São regras de conduta que podem ser interpretadas e aplicadas de acordo com o contexto político, social e, claro, econômico. A guerra, agora, só explicitou que as redes sociais desrespeitam as regras que elas mesmas criaram – permitindo conteúdos sobre o Batalhão Azov, por exemplo – de acordo com a maré. 

As regras valem para todo mundo? Está claro que não – e isso é esperado. É por isso que os moderadores existem: diferenciar caso a caso o que deve ou não ser removido ou ter alcance limitado na plataforma. Mas essas são decisões difíceis e custosas, inclusive politicamente. Os Facebook Papers mostravam, por exemplo, que a empresa tinha um esforço desproporcional de moderação em países ricos e falantes de língua inglesa, e simplesmente abandonava outros. Se afirmar como mera "empresa de tecnologia" é a maneira de não assumir a responsabilidade sobre o esgoto que se formou nas timelines e contaminou o debate público em contextos muito distantes do sol da Califórnia.

A guerra escancarou que ficar neutro é inviável. Enquanto eu terminava este texto, Putin decidiu banir o Facebook da Rússia. Ainda há rumores de que a medida se estenderá também para outras empresas, em uma nova cortina de ferro (digital, desta vez) que pode isolar ainda mais os russos (e prejudicar a comunicação de quem se opõe à guerra). As big techs são, cada vez mais, atores políticos e econômicos com um poder incalculável nas mãos, capazes de mover placas tectônicas e aprofundar crises geopolíticas se tomarem as decisões erradas. O mundo está assistindo, horrorizado, em tempo real, essas consequências.

Tatiana Dias / Editora Sênior




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