O anjo, o diabo, o humano e as eleições


Eis o grande desafio: aprender a ser uma síntese do choque dos contrários, a edificar a paz em meio à guerra

Somos compostos por dois polos opostos constantemente em conflito para encontrar o equilíbrio. Foto: Thiago Gadelha

A psicologia lembra que cada ser humano é constituído de duas forças opostas e inseparáveis uma da outra. A força do Eros, que nos impulsiona para a vida e a do Tanatós, que nos impulsiona para a morte. É uma luta interna entre o bem e o mal, entre anjos e demônios, entre a vida e a morte. É através desta luta interior que nossa dimensão humana se consolida.

Somos compostos por dois polos opostos constantemente em conflito para encontrar o equilíbrio. É através dessa disputa interna e inconsciente que tem permitido ao homem e à humanidade aprimorar sua evolução e civilização. Eis o grande desafio: aprender a ser uma síntese do choque dos contrários, a edificar a paz em meio à guerra. O desafio mais importante para todos nós é encontrar o equilíbrio que nos permita avançar.

Entre o anjo generoso e acolhedor e o diabo, que diz uma coisa e pensa outra, temos o ser humano, que é bem mais do que metade anjo e metade diabo. Um ser que faz destes impulsos contrários, uma bússola para seu caminhar. Quando um assume o comando e busca instalar-se, o outro questiona, e lembra que o equilíbrio da caminhada ocorre quando as duas pernas estão em movimento.

Quando uma toca o chão para buscar apoio, a outra se desloca no ar, para buscar um novo ponto de apoio. Não se trata de valorizar apenas o pé, que está apoiado no chão e produz o impulso para frente, nem o pé no ar, analisando e questionando  a passada dada, mas os dois em movimento. Um sem o outro, não conseguimos sair do lugar. O que nos interessa é o processo que gera movimento, deslocamento e direção.

A jornada é longa e requer flexibilidade, determinação e, sobretudo, clareza para onde queremos chegar. E quando não sabemos aonde queremos ir, qualquer lugar serve. Precisamos, a cada instante, questionar os caminhos que estamos percorrendo, nos proteger dos riscos inerentes a quem caminha e não nos machucar ou machucar os outros. Somos um ser humano, onde coabitam anjos e demônios.

Nos últimos tempos, percebo que um dos dois impulsos internos e inseparáveis, o lado diabólico, foi projetado para fora, personificado no outro como se fosse uma entidade individual e independente. Uma vez que o outro é identificado como a personificação do mal a ser combatido, fica subentendido que sou o anjo, o escolhido de Deus. Inicia-se uma falsa “guerra santa” dos eleitos de Deus contra os diabos excluídos.

Outros são santificados como entidades que precisam ser seguidas, defendidas e eternizadas. Foto: Thiago Gadelha

Outros são santificados como entidades que precisam ser seguidas, defendidas e eternizadas. Criam-se bolhas de alienação, de engano, de pseudo proteção, guetos de intolerância e de combate ao diferente. É uma atitude suicida, o que é extremamente grave porque afeta a trajetória tanto do indivíduo quanto da humanidade. Essa disputa externalizada e personificada no outro, fora de mim, traz consequências graves para nossa saúde mental.

Essa divisão compromete o crescimento de cada indivíduo e de toda a civilização, uma vez que entrava seu crescimento por excluir uma das forças propulsoras de todo processo evolutivo. Diabolizar o outro, o diferente, aumenta os conflitos sociais, criam-se guetos de exclusão, para proteger seus territórios dos outros, vistos como inimigos, infiéis. As ideias excludentes são reforçadas, impedindo a reflexão, única maneira de iluminar o equívoco. 

A disseminação do ódio ao diferente vai excluindo pessoas e recursos, dificultando a coexistência pacífica em meio à diversidade que constitui o tecido da nação brasileira. A energia necessária para uma convivência pacífica e reflexão é gasta com um combate fratricida e suicidário. Nosso futuro como humanidade e sociedade fica comprometido. Neste conflito, os símbolos que unem a nação são usados por grupos e partidos politicos, gerando desunião, intrigas, negacionismo da realidade e notícias falsas que inspiram o ódio e a violência.

Em vez de um com o outro, prevalece um contra o outro. Os símbolos indicam direção, une, agrega e nos faz pertencer. O diabólico, por sua vez, desperta ódio e inveja. Essa tentativa de dividir o indivisível é uma atitude egoísta, deliberada para intrigar, confundir e dividir. Ela surge quando o poder constituído se sente ameaçado; ou outro poder tem a pretensão de tomar o lugar do outro e se instalar. É preciso ter consciência de que minha primeira luta é comigo mesmo.

O combate é de mim comigo mesmo, fruto de um diálogo interno, acolhendo minhas imperfeições, limitações, minhas sombras, meus sonhos e projetos. Transpor esse embate para fora destrói o humano e ameaça conquistas civilizatórias. Com o avanço do processo eleitoral, este conflito tende a se agravar. Em vez de os candidatos apresentarem propostas inovadoras, tornam-se um palco de combate ao adversário, visto como a encarnação do diabo.

Se você é uma das pessoas que costuma ver no outro o diabo, esse diabo é o seu, que você expulsou de si. Chame-o de volta, converse com ele e você crescerá como uma pessoa. Se você costuma identificar nos outros o que detesta em você, perde a chance de crescer e sua vida está fadada ao fracasso. Gustavo Jung, o criador da psicologia analítica, afirmava que o que mais nos incomoda nos outros é a revelação do que não suportamos ver em nós mesmos.

E o que mais admiramos nos outros, é o que gostaríamos de ter em nós mesmos. Em outras palavras, tudo o que nos causa irritação ou admiração nos outros pode nos levar a uma compreensão mais profunda de nós mesmos. “A menos que você aprenda a enfrentar as suas próprias sombras, continuará a vê-las nos outros, porque o mundo fora de você é apenas um reflexo do mundo dentro de você”.

O confronto deve se estabelecer em nosso ser profundo. Outro psicanalista, Daryl Sharp, nos diz que: "Na sombra há aspectos ocultos ou inconscientes de si, bons e maus, que o ego reprimiu ou nunca reconheceu”. Somente pela reflexão e pelo diálogo interno consigo e com os outros e por uma espiritualidade plural, geramos a consciência de que pertencemos à mesma família e convivemos na mesma casa.

Dr.Adalberto Barreto, Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará – UFC, Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Social. @Adalbertobarretooficial 

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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