Lula fez um discurso antológico na ONU, de largo impacto global e que orgulhou todas, todos e todes que lutaram e lutam para derrotar o fascismo. Algumas proclamações de Lula, entretanto, não correspondem ao cotidiano e políticas de seu governo
Por Mauro Lopes, da Sucursal Brasília
Lula discursa na ONU em 19 de setembro de 2023. 📷Ricardo Stuckert
Lula começou a falar na abertura da Assembleia Geral da ONU na manhã desta terça-feira (19) e foi como se o mundo parasse para escutá-lo. Foi aplaudido sete vezes. Um discurso irretocável -exceto, talvez, pela falta de menção aos povos indígenas. Um discurso que fez o mundo respirar aliviado com a volta do Brasil ao chamado concerto das nações, depois de ter se tornado um país-pária sob Bolsonaro. Um discurso do líder do Sul Global, dos “países em desenvolvimento”, conceito que atualiza tanto a noção de Terceiro Mundo e como o movimento dos não-alinhados de 1960-70 (não é coincidência que Lula tenha desembarcado em Nova York depois de suas visitas à África e a Cuba).
O texto proclamado por Lula foi atravessado pelo tema crucial da fome/desigualdade. Isto não é sugestão de qualquer assessor. Não. Lembro-me de uma conversa em fevereiro de 2020, quando ele se preparava para ir até o Vaticano encontrar o Papa Francisco e agradecer a solidariedade durante seu tempo de prisão. Lula dizia, empolgado, que o tema da conversa com o Papa seria fome/desigualdade, que considerava uma agenda comum de ambos e a questão central do mundo nos dias que escorrem. Foi o que aconteceu.
O discurso da ONU ecoou a centralidade do tema que ele burilou ainda na cela da Polícia Federal em Curitiba.
Quem não se emocionou quando ele, corajosamente, pronunciou o nome de Julian Assange e denunciou os bilionários?
Quem não se orgulhou quando Lula falou do combate à fome, o combate ao feminicídio e a “todas as formas de violência contra as mulheres”, na defesa “dos direitos de grupos LGBTQI+ e pessoas com deficiência”?
Lula surpreendeu ao proclamar que a “igualdade racial na sociedade brasileira” será um 18º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável no Brasil, que se acrescenta aos 17 ODS definidos pela ONU.
Terminei o discurso muito impactado. Mas é preciso dizer que houve desconforto, incômodo com algumas contradições flagrantes e nada secundárias entre o discurso e a ação concreta de seu governo no Brasil, em cinco momentos:
1. Lula denunciou a “gravidade da crise climática” sem precedentes e clamou por uma revolução ambiental global. Enquanto isso, seu governo mantém e amplia a exploração de petróleo no país e ameaça iniciar a produção em plena região da foz do Amazonas. Sua ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, referência no tema em todo o planeta, foi alijada do “Plano de Transformação Ecológica”, elaborado por Fernando Haddad -um ministro da Fazenda tão fiscalista quanto seu antecessor Paulo Guedes. Marina Silva foi escanteada em Nova York como vem sendo no Brasil. Um interessante levantamento de O Globo publicado na última segunda-feira (18) indica que Marina Silva é uma das ministras menos recebida por Lula em audiência oficial desde o início do governo -uma vez, ao lado do recém-nomeado André Fufuca e do ex-ministro do GSI Gonçalves Dias. Enquanto isso, os dois ministros que lideram a frente de destruição do meio ambiente brasileiro, André Silveira, das Minas e Energia, e Carlos Fávaro, da Agricultura, foram recebidos 11 e 8 vezes, respectivamente. Lula lançou-se como o líder climático do planeta, mas seu governo vangloria-se de que alcançará superávit recorde de US$ 90 bilhões da balança comercial em 2023 -graças, sobretudo, às exportações do agronegócio, com a soja, cujo cultivo é a ponta de lança da destruição ambiental no país, como grande destaque;
2. Lula atacou o neoliberalismo enquanto faz um governo em aliança com os neoliberais e com um programa econômico ao feitio deles, a ponto de buscar fórmulas para liquidar com os pisos constitucionais da Educação e Saúde e proclamar a mais emblemática das metas neoliberais de gestão do Estado -o déficit zero.
3. Lula defendeu os direitos trabalhistas, enquanto no Brasil descumpre a promessa de campanha e recusa-se a revogar a destruição da legislação trabalhista promovida pelos governos Temer e Bolsonaro;
4. Lula defendeu uma reforma profunda das instituições, enquanto reforça instituições como as Forças Armadas e a Polícia Rodoviária Federal, estruturalmente inimigas do povo brasileiro;
5. Lula afirmou, como vimos acima, a incorporação da igualdade racial como 18º ODS enquanto mantém Rui Costa, que levou a Bahia a ser a líder no assassinato de jovens negros pelas polícias; enquanto setores de seu governo hostilizam a reivindicação de uma mulher negra no STF; e seu partido apoia uma reforma eleitoral que representa um retrocesso de décadas ao reforçar o poder patriarcal branco. Isso sem falar que o PAC irá financiar uma política de perfil claramente racista, a privatização dos presídios, copiada do modelo estadunidense e que irá transformar milhares e milhares de jovens negros (em breve mais de um milhão) em mão de obra de custo irrisório, além de liquidar com as políticas de desencarceramento -pois, na lógica da privatização, quanto mais presos, mais abundante a disponibilidade de trabalhadores em condições análogas à escravidão.
O discurso foi histórico, com momentos emocionantes e repercussão internacional. Mas as contradições estão aí, à vista de todos. Basta abrir os olhos.