Esgotado o repertório, é tempo de revolução.
Este texto foi publicado originalmente na newsletter semanal de Carla Jimenez no Intercept. Assine. É de graça e chega direto na sua caixa de e-mails.
Parece que há pouco a dizer faltando 18 dias para a eleição mais importante das nossas vidas. Todos os alertas já foram dados nestes anos de Jair Bolsonaro, desde que o ex-deputado era candidato pela primeira vez ao Palácio do Planalto. Ainda que as pesquisas deste segundo turno favoreçam o ex-presidente Lula, a sensação é de estar diante de uma mesa de cassino assistindo pacientemente a roleta ir perdendo a força até parar no número 13 vermelho ou no 22 verde e amarelo. Quem se atreve a ter certeza, a esta altura do campeonato, sobre o resultado que sairá das urnas no dia 30? O entusiasmo dos bolsonaristas parece contagiar parte da população, que até reduz a rejeição a uma eventual reeleição do presidente.
Cresce a ansiedade de resolver um quadro indefinido à medida que o Brasil assiste a tudo que está em jogo neste pleito. Diante de um resultado que fez tremer as bases do campo progressista no dia 2 de outubro, Bolsonaro, confiante na sua vitória, deixou claro que pretende dar um golpe constitucional a la Hugo Chávez para aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal.
Seríamos arrastados para o início do século 20 sem escalas, com um modelo autoritário e machista celebrado pela extrema direita do mundo todo. O que seria isso na prática, soa como um pesadelo. Um Supremo com muitos Nunes Marques suavizando os ataques de Bolsonaro às mulheres, aos jornalistas, aos indígenas, aos protetores da natureza, naturalizando a violência. Damares Alves elevando a fixação a níveis extraordinários para justificar a castidade feminina.
Tarcísio de Freitas, se eleito governador de São Paulo, completando um programa que privatiza a Sabesp, promete um faz de conta de redução no preço da conta da água. Outros tantos benefícios para os usineiros do estado, com orçamento secreto na Assembleia Legislativa e mais presídios e ausência de câmera no uniforme da polícia para maior liberdade de matar.
O gosto é amargo, mas é real, nada retórico. Tarcísio falou abertamente sobre esses planos durante o debate da Band na noite da última segunda-feira, dia 10. Além de Bolsonaro, o agora senador eleito Hamilton Mourão e o deputado federal Ricardo Barros deram entrevistas, muito à vontade, comentando a ideia de aumentar o número de ministros do STF. Até Zé Trovão, o caminhoneiro que pediu intervenção militar em 7 de setembro de 2021, descobriu que por meio do voto e da democracia, ele pode continuar a azucrinar o Supremo sem o risco de ser preso outra vez.
No país de milhões de encarcerados sem julgamento, de uma justiça inacessível para a grande massa, a discussão sobre a quantidade de ministros na Corte não faz nem cosquinha para 99% da população. É tema para intelectual progressista. Uma nata do empresariado não se sente lesada pelas ameaças antidemocráticas do presidente. Ao contrário. Torce por ela, como torceu pela reforma trabalhista, pelo estado mínimo para a população, mas com um gordo BNDES para facilitar crédito ao empreendedor.
É inútil buscar culpados para entender como chegamos até aqui. Se é culpa da falência do capitalismo, da retomada da extrema direita mundial, do Valdemar da Costa Neto, da Nicarágua, ou do CQC. Não faz a menor diferença no dia de hoje. Estamos vivendo o nosso Brexit, um divórcio com a ilusão de que nossa competência estava desbravando mais corações. É o limite do Brasil, imposto pelos 51 milhões de votos à política que empobreceu o país com Bolsonaro.
Chegamos ao ponto de ver um candidato à presidência ensaiar uma carta aos evangélicos para garantir a liberdade religiosa, enquanto a recatada Michelle Bolsonaro faz terrorismo por causa de um banho de pipoca do orixá Obaluaê, ritual da umbanda e candomblé, de purificação e cura. Pensar que em 2003 Lula estava às voltas com uma Carta ao Povo Brasileiro, dirigida ao mercado financeiro, para assegurar seu compromisso com a estabilidade da moeda…
Há uma inércia do fascismo no Brasil que aflorou agora, lembrou o filósofo Vladimir Safatle, na entrevista imperdível que concedeu ao Contragolpe dessa segunda no YouTube. Por favor, assista. É uma aula de Brasil e um convite à reflexão do que precisamos rever no campo progressista. Safatle chama a atenção para essa energia de “revolução” que Bolsonaro empreendeu em seu governo, de quebrar as instituições por dentro, fazendo grande parte de seu eleitorado acreditar que vai ser beneficiado por um projeto bilionário, ainda que na prática ele distribua migalhas na ponta.
Estamos de olhos vendados na tábua do navio, perto de cair na água. Com Bolsonaro reeleito ou Lula vitorioso, nada será fácil daqui em diante. Não temos outra saída se não nos despir de certezas e encarar que precisamos da nossa revolução. De argumentos, de coragem, de repertório para escalar essa montanha outra vez, para salvar a dignidade, a prevalência do coletivo. Essa viagem tem sido mais dura do que imaginávamos, uma sensação de estar numa pandemia eterna sob esse governo.
Me consola poder reconhecer quem trouxe grandeza e pequenez a esse momento em que a história está sendo escrita. Dos economistas pais do Plano Real que declararam apoio a Lula, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, das lideranças negras e indígenas. Há a inércia fascista, sim, mas há a inércia da luz e resistência. Hoje, 6 milhões de eleitores, a diferença de votos entre Lula e Bolsonaro no primeiro turno, ainda nos separam de um destino mais cruel.