O Centrão na Câmara e o governo Bolsonaro

1. Apresentação

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 com uma narrativa de enfrentamento da “velha política” e, por extensão, do chamado Centrão – uma agremiação com pouca identidade ideológica, marcada por fisiologismo e alinhamento à direita do campo político do Congresso, hoje constituída por PP, PL, Podemos, PROS, PSD, PTB, Republicanos, Solidariedade, Avante e Patriota, que totalizam 209 cadeiras na Câmara. As críticas de Bolsonaro ao Centrão, contudo, não resistiram à necessidade de distensionamento das relações entre o Executivo e o Legislativo. Já em meados de 2020, o presidente rendeu-se à tentativa de montagem de uma coalizão de governo, distribuindo ao Centrão ministérios e postos de segundo escalão.

Essa aproximação formal, no entanto, não foi motivada por uma suposta baixa adesão da Câmara às preferências do Planalto. Em linhas gerais, o governo Bolsonaro, desde o seu início, vem mantendo taxas expressivas de apoio na Casa, ainda que menores do que as verificadas em governos anteriores, a despeito da enorme dificuldade em definir e coordenar uma agenda legislativa propositiva e autônoma. A agenda do governo é negativa e defensiva desde 2019 e mantém essas características ainda hoje.

Sem agenda consistente, a coalizão montada depois de 1 ano e meio de mandato parece ter sido mais uma resposta eficiente (ou suficiente) às crises provocadas pelo governo em diferentes frentes: a) ambiental, com aumento vertiginoso do desmatamento e destruição paulatina do sistema de licenciamento e fiscalização; b) humanitária, dado o fracasso do Planalto na coordenação e no combate à pandemia de Covid-19; e c) política-criminal, com envolvimento da família Bolsonaro em casos de corrupção, aproximação com milícias e ameaças às instituições democráticas por meio da propagação de fake news, partidarização do Exército e incitamento ao fechamento/invasão do Supremo Tribunal Federal.

A tentativa do governo de fidelizar o Centrão pode ser lida como uma estratégia assertiva de contenção de danos, que ganha força em 2021 com a eleição de Arthur Lira (PP) — aliado do presidente Bolsonaro — à presidência da Câmara. O engavetamento de centenas de pedidos de impeachment e a resistência à abertura de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) desfavoráveis ao governo falam a favor dessa tese, assim como a derrota do voto impresso, das reformas tributária e administrativa e de grande parte das privatizações. Mesmo com Lira na presidência da Câmara, imprimindo alto grau de centralismo aos trabalhos, não houve ganhos expressivos e sistemáticos para uma eventual agenda legislativa do Planalto.

Para avaliar melhor essa interpretação, nos debruçamos sobre os dados da atuação do Centrão dentro da Câmara desde 2019. A partir de conceitos operacionais como governismo, sucesso legislativo e natureza da agenda aprovada, buscamos respostas para as seguintes perguntas: como o Centrão se comporta nas votações da Câmara? Ele apoia o governo mais do que o conjunto da Casa? Isso mudou (e como) ao longo da legislatura? Qual é o sucesso efetivo do presidente na aprovação de sua agenda e qual é o desempenho dos projetos de parlamentares do Centrão relativamente ao conjunto dos deputados? Qual é a agenda priorizada pela Câmara e aquela emplacada pelo Centrão? A seguir, comentamos os resultados.

2. Adesão ao governo: Câmara e Centrão

Do início de 2019 ao final de 2021, a taxa média de apoios[1] da Câmara ao governo Bolsonaro ficou em torno de 70%, com algumas quedas bruscas antes do segundo semestre de 2020. Comparando ao apoio médio geral, o Centrão apresenta taxas mais elevadas. Esse resultado é provavelmente produto do perfil conservador dos(as) parlamentares da atual legislatura e também da presença da oposição entre os demais partidos. Além disso, esse grupo aumentou seu apoio ao governo, entre 2019 e 2020, de 85% para 89%. O aumento é pouco expressivo, mas denota comportamento inverso ao dos demais partidos.

Gráfico 1. Apoio ao goveno em votações (%)

É importante, no entanto, ressaltar três questões. Em primeiro lugar, antes da adesão mais formal ao governo, o Centrão já apoiava a agenda do presidente em patamares superiores aos demais. Em segundo, a adesão formal ao governo não mudou expressivamente a taxa média de apoio desse grupo. A menor oscilação verificada a partir de junho de 2020 também pode ser observada no padrão do apoio dos demais partidos. Por fim, nem mesmo a eleição de Arthur Lira (PP) resultou em mudança positiva e expressiva desse quadro, afastando a hipótese de que a presidência de Rodrigo Maia (sem partido) estivesse reduzindo o efeito da entrada do Centrão no governo no que diz respeito ao apoio geral em votações. Ao contrário, essa taxa cai marginalmente na presidência de Arthur Lira, se comparada à de 2020.

Gráfico 2. Apoio ao governo em votações nominais na Câmara, 2019-2021 (%)

Quando o foco é o alinhamento geral entre parlamentares, consideradas também as votações sem orientação do governo, o resultado é similar. A distribuição dos(as) deputados(as) em uma escala de notas de 0 a 10 (a partir da aplicação de algoritmos[1] já testado pela ciência política), em que 10 representa maior proximidade ao governo e vice-versa, revela que o número de parlamentares moderadamente governistas (nota 8) e de centro (nota 5) diminuiu com a saída do ex-presidente da Câmara. Com Lira, há aumento do número de deputados com notas 9 e 10, por um lado, mas também de parlamentares com nota 2, por outro. Isso não significa que a Câmara, em geral, atuou mais fortemente em favor do governo, mas é um indicador de que os parlamentares estão relativamente mais distantes entre si, mais polarizados.

Gráfico 3. Alinhamento/Governismo na Câmara – Número de deputados por nota.

E esse aumento da dispersão no polo à direita do alinhamento (notas mais altas), decorre, em grande parte, do deslocamento de parlamentares do Centrão. No período pré-Lira, a média das notas desse grupo ficou em 7,83. Já na atual presidência da Casa, saltou para 8,21.

Gráfico 4. Alinhamento/Governismo na Câmara – Nota média por grupo e período.

Além disso, foram especialmente alguns partidos do Centrão que aumentaram seu comportamento pró-governo sob a gestão do aliado de Bolsonaro. PP, PL e Republicanos se tornaram partidos mais governistas e com alto grau de coesão. As três legendas, juntas, controlam cerca de R$150 bilhões do orçamento de 2022 e ocupam posições de destaque no governo.

Gráfico 5. Alinhamento/Governismo na Câmara

3. Sucesso legislativo do presidente e do Centrão

A taxa de sucesso legislativo do presidente é outro indicador relevante para avaliar o avanço da agenda do governo na Câmara. Enquanto a taxa de apoio mede a adesão dos parlamentares à posição governamental em cada votação, não importando de quem é autoria do projeto, a taxa de sucesso mede o êxito do governo na transformação dos projetos de sua autoria em norma jurídica.

Mais especificamente, o indicador mostra o percentual de projetos de lei ordinária, de lei complementar e medidas provisórias do Executivo que foram exitosos ao longo do governo, por ano de apresentação da matéria.

A tendência esperada, em condições normais, é que a taxa de sucesso seja decrescente, por dois fatores: um cronológico (projetos de primeiro ano têm mais tempo para aprovação do que os de último) e outro político (a “lua de mel” no início do governo e as disputas eleitorais no fim).

As taxas alcançadas por Bolsonaro desde 2019 não estão entre as melhores. Os resultados superam os do segundo, e breve,mandato de Dilma Rousseff e se aproximam da presidência provisória de Temer, mas são menores que aqueles observados nos governos Lula e Dilma I, especialmente em 2019. O primeiro ano de Bolsonaro somente é melhor que Dilma II. Ainda que o desempenho em 2020 tenha melhorado, tal padrão não parece ter se mantido em 2021, mesmo com a entrada do Centrão no governo e com a gestão de Arthur Lira (PP) na Câmara, outro sinal de que o apoio desse grupo parlamentar ao governo não se dá tanto na direção de avançar uma agenda legislativa do presidente.

Gráfico 6. Sucesso legislativo do Presidente

O sucesso legislativo também pode ser medido em relação ao desempenho dos parlamentares. Embora a fórmula para o cálculo da taxa seja a mesma, os resultados são substancialmente diferentes dos alcançados pelo Executivo, devido ao maior poder de agenda do presidente, que decorre de sua posição institucional, das regras do processo legislativo e dos recursos políticos a sua disposição (que incluem cargos e orçamento, mas não só). A consequência é que, em geral, enquanto as proposições do executivo são mais discutidas e aprovadas, é raro que deputados, individualmente ou mesmo em grupo, consigam emplacar os projetos que apresentam, transformando-os em lei. Por conta disso, a comparação relevante para analisar o espaço do Centrão na produção legislativa é relativa ao conjunto dos deputados.

Na atual legislatura, o percentual de projetos de iniciativa de parlamentares aumentou em 2020 e decaiu em 2021. Padrão semelhante ocorreu quanto às proposições do Centrão, mas com diferenças dignas de nota. O salto ocorrido no segundo ano do governo, época das tratativas para a entrada do Centrão na base de apoio de Bolsonaro, foi mais expressivo – sua taxa de sucesso passou de 0,7% para 2,05%, enquanto outros deputados só aprovaram 0,82% dos seus projetos nesse mesmo ano. E, apesar da diminuição em 2021, o desempenho do Centrão seguiu superior à média de todos os parlamentares.

Gráfico 7. Sucesso legislativo do centrão x deputados em geral (2019-2021)

Esse quadro, contudo, não é exclusivo da atual legislatura. Embora em 2020, o grupo tenha alcançado a sua maior taxa de sucesso desde 2003, de lá para cá o Centrão tem obtido sucesso legislativo sistematicamente maior do que o do restante da Casa, exceto em alguns anos durante os governos Lula. Isso nos permite dizer que, nas últimas duas décadas, as chances de um projeto de iniciativa de parlamentares virar lei é maior se o autor (ou um dos autores) pertencer a um partido do Centrão.

4. Temas da agenda: Planalto, Câmara e Centrão

Resta-nos avaliar se os temas que compõem as agendas do governo e do Centrão foram similares ou não, de 2019 a 2021. Como as taxas anuais de sucesso já indicavam, o governo não tem emplacado significativamente sua agenda em termos numéricos. Até agora, apenas 34% das proposições apresentadas entre 2019 e 2021 se tornaram lei. O desempenho relativo do Planalto foi melhor em temas com poucos projetos, como turismo, Direito Civil e Processo Civil e estrutura fundiária. Em termos absolutos, o maior número de matérias aprovadas está nos temas Administração Pública (33), Finanças Públicas e Orçamento (32), Saúde (27), Economia (20) e Trabalho e Emprego (16). Mesmo no tema com maior número de projetos apresentados, Finanças Públicas e Orçamento, a taxa de aprovação foi relativamente baixa (28%).

Gráfico 8. Proposições do Executivo, por tema

Na Câmara, a agenda aprovada em maior número inclui proposições relativas à Finanças Públicas e Orçamento, embora o tema Saúde também tenha sido proeminente. Se considerados os 7 temas de maior relevância para o governo e para a Câmara, há apenas uma diferença mais significativa: o governo investiu mais em Economia enquanto a Câmara priorizou Direitos Humanos e Educação. Fora isso, ambos avançaram legislação relativa às Finanças Públicas e Orçamento, Saúde, Administração Pública, Trabalho/Renda e Previdência. Governo e Câmara, portanto, aprovaram agendas sobre temas bastante semelhantes. Outro ponto que merece destaque, para além do sucesso legislativo geral do Centrão, é a proeminência do grupo na autoria de praticamente todos os temas cujas proposições, entre aquelas apresentadas por deputados, foram transformadas em lei.

Gráfico 9. Proposições de Deputados aprovadas, por tema

5. Afinal, qual é a função do Centrão para o presidente e qual é o seu peso na Câmara?

Apesar da retórica da campanha em 2018, não houve, na Câmara, desde o início do governo, oposição entre Bolsonaro e os partidos do Centrão. Ao contrário, o Centrão tem garantido apoio sistemático ao executivo nas votações, em patamar bastante superior ao oferecido pelos demais partidos. Isso, contudo, não é uma singularidade do governo Bolsonaro e também não resulta da eleição de Arthur Lira (PP) para a Mesa Diretora. O efeito de estabilização no apoio em votações se dá antes de sua ascensão ao comando da Casa e o alinhamento mais estreito com o governo, depois disso, se destaca em algumas bancadas particulares, incluindo a do PP. Ou seja, para o avanço da agenda legislativa presidencial, a entrada do Centrão no governo de fato não representou mudanças importantes. O sucesso legislativo do presidente é baixo e assim permaneceu até o final de 2021.

Por outro lado, o aumento da distribuição de recursos e cargos ao Centrão a partir de 2020 parece ter repercutido na sua capacidade de aprovar projetos de autoria de seus parlamentares, comparativamente aos demais deputados. Embora essa diferença seja relativamente pequena, o fato de o Centrão não ter maioria da Casa (209 entre 513 parlamentares) torna o achado relevante. Mais importante que isso, contudo, é que o Centrão aumenta, em 2020, o seu próprio desempenho com relação ao ano de 2019. Na arena legislativa, esse parece ter sido o principal efeito do ganho de mais espaço no Planalto.

Do ponto de vista da natureza da agenda, governo e Centrão seguem, aparentemente, na mesma direção. Os temas mais priorizados por ambos são praticamente os mesmos, com poucas exceções. Além disso, o nível de apoio oferecido ao governo em votações desde 2019 também sugere relativa convergência de interesses sobre políticas públicas, ao menos quando consideradas as preferências manifestas do Planalto e formalmente apresentadas em proposições legislativas.

No âmbito do processo legislativo, para além das retóricas e narrativas de campanha voltadas ao eleitor, o governo Bolsonaro e o Centrão, majoritariamente, nunca estiveram em lados realmente opostos. A maior distribuição de recursos para o grupo, a partir do segundo semestre de 2020, manteve tudo como estava. O ganho para o governo foi ter se mantido de pé.

[1] A taxa considera somente votações nominais com orientação do líder do governo e com diferença entre maioria e minoria dos votos de pelo menos 10%.

[2] W-nominate, que extrai dimensões latentes a partir dos dados de votação. Utilizamos a dimensão com maior poder explicativo, usualmente interpretada, para o caso brasileiro, como sendo governo-oposição. Parlamentares com padrões de votação similares receberam scores similares. Quanto maior a diferença nos padrões de votação, maior a distância entre os scores.

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 Debora Gershon e Júlio Canello

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