Como lucrar na guerra

Veículos do capital ajudam a mão cada vez mais visível do mercado a transformar o sofrimento humano em lucro.

Reprodução Creative Commons

Na noite de quarta-feira, quando a invasão russa à Ucrânia já era uma certeza, assinantes da newsletter do InfoMoney receberam um email com o título: “Rússia x Ucrânia: como investir?”.

No dia 17, o próprio InfoMoney já havia falado no podcast Stock Pickers sobre o conflito. O apresentador Lucas Collazo disse logo na abertura: “não estamos torcendo por uma guerra, pelo amor de deus, mas existe o ônus e o bônus de tudo”. Henrique Esteter, companheiro de programa, respondeu com uma risadinha. 

Um dia depois, o canal MyNews abriu uma live no YouTube intitulada “Juros altos e tensão entre Rússia e Ucrânia: onde investir?”. 

O portal Exame se saiu com essa trinca na última quinta-feira, quando bombas russas já caíam em solo ucraniano: 

  1. Guerra na Ucrânia: o impacto na bolsa de valores
  2. Guerra na Ucrânia pode afetar o dólar? [O banco suíço] UBS aponta efeitos
  3. Fuga de US$ 150 bilhões: mercado cripto despenca após ataques da Rússia

Não sou ingênuo. É esperado que a abordagem de um veículo econômico seja o dinheiro – principalmente quando tem money até no nome –, mesmo diante das mortes e das tragédias humanitárias que acompanham qualquer guerra. As editorias e veículos do mercado operam a favor dele. Já trabalhei nesse espaço e conheço o meio. O capitalismo funciona assim: tudo é oportunidade. Se tem casa caindo, alguém vende tijolo. Com guerra, mortes e desalojados na Ucrânia, não seria diferente. Faltou sensibilidade nas manchetes? Faltou, e muita. 

Mas tem algo mais

Exame e InfoMoney não são meros veículos de informação. São empresas do mercado financeiro: os dois pertencem a gestoras de investimentos (a Exame é do BTG Pactual, e o InfoMoney é da XP). O MyNews é um canal que, como tantos outros, recebeu patrocínios relevantes de corretoras (no caso, da Genial Investimentos). 

A relação é conflituosa: a moralidade do megainvestidor não tem como ser a mesma do jornalista – que, segundo seu código de ética, deve “opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem”. Como um veículo subordinado ao grande capital se posicionaria no caso hipotético de um governante autoritário de péssima dicção e oratória que trabalha a favor dos lucros do mercado e contra os direitos humanos? Ele colocaria a humanidade à frente do dinheiro? 

A influência do mercado financeiro no jornalismo é ancestral. Bancos, corretoras e gigantes da bolsa de valores sempre foram grandes anunciantes, mas, agora, a mão do mercado está cada vez mais visível no noticiário. Com o controle direto ou influência em veículos, o mercado pode direcionar percepções sobre os acontecimentos – e essas percepções se transformam na compra e venda de ações e papéis. Quem controla a narrativa embolsa lucros. Essa lógica ignora conceitos como empatia e, sorrateiramente, envenena o debate público dia após dia ao naturalizar o oportunismo capitalista frente à miséria e à morte. 

Tenho certeza de que os editores da newsletter do InfoMoney acreditavam (talvez ingenuamente) que estavam apenas prestando um serviço ao leitor – ninguém quer perder dinheiro, afinal. Mas o título causa indignação não somente porque revela uma insensibilidade brutal em uma pequena decisão editorial, mas por escancarar a crescente desumanidade da mídia controlada pelos bilhões da Bovespa. 

Esses episódios ressoam nojo em um público já cansado de ver tragédia transformada em balcão de negócios. Brumadinho arrasada num mar de lama? Compre Vale. Guerra na Europa? Renda fixa, commodities, ouro e dólar. A miséria e o luto de milhões nessa sequência terrível de tragédias que vivemos têm sido sistematicamente ignorados em nome do sucesso de grandes investidores – para os pequenos, o sucesso ironicamente nunca acontece. 

Existe uma razão estrutural para isso. Na sucessão de crises, o jornalismo ficou ainda mais vulnerável ao capital. Todos nós vimos a partir de 2013 como isso se traduziu em capas e manchetes que expressavam uma torcida explícita por projetos políticos que surrupiaram dinheiro e proteção dos trabalhadores, destruíram o patrimônio natural do país, permitiram violações de direitos humanos e mataram centenas de milhares de brasileiros na pandemia. 

O código de ética da profissão, enquanto isso, fica perdido debaixo de fotos desbotadas numa caixa de sapato.

 



Alexandre de Santi Deputy Editor



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