O ultraliberal de extrema direita Javier Milei foi eleito presidente da Argentina no último domingo (19). 📷: DIEGO LIMA / AFP
Longe de rumar para uma unidade maior, a América Latina parece cada dia mais uma colcha de retalhos
Olá, aos ouvidos de Lula, chegam o som triste do tango argentino, o sertanejo universitário choroso da Faria Lima e o heavy metal descompassado do Congresso.
.O fascismo respira. Como uma versão vizinha de um filme que já conhecemos, Javier Milei foi eleito presidente da Argentina. Há muitas interpretações e análises, mas Valério Arcary sintetiza bem o tamanho do problema: o neofascismo é um fenômeno global, em que a extrema direita se alimenta da crise econômica em sociedades fraturadas e da incapacidade da esquerda de sair do beco imposto pelo neoliberalismo. E como destaca Giovana Guedes, pode ser o fim da linha também do peronismo e da sociedade industrial que o projetou.
Também não são poucos os problemas que os resultados da eleição argentina trazem ao governo Lula, frustrando a tentativa da política internacional brasileira de retomar a integração continental, salvar o Mercosul e projetar o Brics. Longe de rumar para uma unidade maior, a América Latina parece cada dia mais uma colcha de retalhos. E só falta a volta de Trump no ano que vem para fechar as portas de um ciclo de governos progressistas que já nasceu frágil. Claro, também há análises que buscam diferenciar a vitória da extrema direita na Argentina e do bolsonarismo no Brasil, defendendo que “não é bem assim”, que a realidade é outra e que a Argentina tem tradição de derrubar presidentes na rua. Assim, muitos apostam que o governo Milei não sobreviveria por muito tempo. Mas o mesmo não foi dito de Bolsonaro? Seja como for, a vitória de Milei foi a melhor notícia que os bolsonaristas tiveram este ano e reforça a ideia de que ainda há muito espaço para a extrema direita crescer. E é preciso que o governo brasileiro também entenda isso, alerta Fernando Horta, pois se ficar preso nas amarras da política fiscal e das alianças à direita, sem fazer também a disputa ideológica, o “efeito caipirinha” pode virar a ressaca de um tango.
.Sempre eles. Como já se sabe, o governo Lula III joga com um olho no apoio popular, e o outro no mercado e no centrão. No primeiro caso, a semana trouxe más notícias: a pesquisa Atlas Intel apontou mais uma queda na aprovação do governo. A parcela pessimista reclama da política fiscal e controle de gastos, enquanto a otimista vê com bons olhos as relações internacionais, direitos humanos e redução da pobreza. As expectativas sobre a situação econômica e o mercado de trabalho também não são ruins. Alguns sinais que dão alento ao governo são a queda do desemprego no terceiro trimestre, a tendência do Banco Central em continuar cortando os juros e o sucesso do Desenrola Brasil.
Do outro lado, mesmo de barriga cheia, o mercado também fez coro de insatisfação depois que Lula colocou em questão o déficit zero. Além da política fiscal, também teve chiadeira com os rumos da reforma tributária, ainda que a Faria Lima concorde que é melhor essa reforma do que nenhuma. Outro ponto de atrito tem sido a Petrobras. Os jornalões ecoaram críticas de Lula ao atual preço dos combustíveis, alertando que nessa conjuntura internacional o antigo PPI seria mais vantajoso do que a atual política de preços praticada pela empresa. Porém, a Federação Única dos Petroleiros alerta que a jogada faz parte de um movimento do centrão para abocanhar a presidência da Petrobras e retomar a política de privatizações.
.Jogo duplo. Já o centrão continua fazendo o seu tradicional jogo de morde e assopra. Ou melhor, assopra e morde. O governo nem teve tempo de comemorar a aprovação do projeto de taxação de contas offshores e fundos especiais bilionários na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, e já foi surpreendido pela aprovação na Câmara da Carteira Verde Amarela de Paulo Guedes, que flexibiliza leis trabalhistas. Além disso, os parlamentares obrigaram o Ministério do Trabalho a recuar na proibição dos trabalhos nos finais de semana e feriados antes que a medida caísse por um decreto legislativo.
A bancada ruralista também fez das suas, tentando incluir os reis do desmatamento - o agronegócio - no mercado de carbono e aprovando o PL do Veneno na Comissão de Meio Ambiente do Senado, diminuindo as restrições aos agrotóxicos, com parecer favorável do relator petista Fabiano Contarato. Aproveitando o ritmo, a bancada ruralista ainda tentou derrubar o veto de Lula sobre o Marco Temporal, cuja votação no Senado foi adiada por uma manobra do governo, evitando uma gafe às vésperas da COP 28. Mas, com isso, outras pautas também atrasaram, como os vetos de Lula sobre o arcabouço fiscal e sobre as novas regras do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Ainda no Senado, a PEC que restringe poderes do STF também foi aprovada, graças à aliança de ocasião entre Rodrigo Pacheco e o bolsonarismo e contando com o voto do líder do governo Jaques Wagner, que também sinalizou apoio à PEC da oposição que amplia orçamento para a Defesa em 2% do PIB. Ainda que a PEC do STF tenha sido aprovada sem efeitos práticos e possa acabar numa gaveta na mesa de Arthur Lira, o fato é que, animados com a vitória de Milei na Argentina e contando com um “mártir” na Papuda para responsabilizar Alexandre de Moraes, o bolsonarismo ataca seu alvo preferido - o STF - para tentar sair do ostracismo.
* Ponto é editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do blog.
Edição: Geisa Marques