A sentença penal condenatória produz, além da imposição de uma sanção em decorrência da prática de uma infração penal, efeitos extrapenais, isto é, de natureza cível ou administrativa. Estes, por sua vez, são definidos em duas categorias, genéricos, aqueles que independem de declaração judicial (artigo 91, CP), e específicos, os que dependem de declaração judicial (artigo 92, CP).
Nesse passo, o artigo 92 do Código Penal, em seu inciso I, estabelece que:"Artigo 92 — São também efeitos da condenação:
I — a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo:
a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;
b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos nos demais casos."
Ou seja, referido artigo prevê a perda do cargo a funcionários públicos [1] que, ocupando cargos públicos, pratiquem delitos com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública, cuja pena seja igual ou superior a um ano, ou, em se tratando de crime comum, sejam punidos com pena privativa de liberdade superior a quatro anos.
Suponha, a título de exemplo, que um funcionário público seja condenado pela prática do crime de peculato (artigo 312, CP) a uma pena de oito anos de reclusão em regime inicialmente fechado. Certamente, na reprimenda será imposta a perda do cargo como efeito extrapenal específico. Noutro aspecto, em se tratando de crime comum (roubo, por exemplo), a perda do cargo poderá ser aplicada se a pena for superior a 4 quatro anos.
Ocorre que, em ambos os casos, o crime foi praticado por pessoa que, à época dos fatos delituosos, já era ocupante de cargo público ou que desempenhava função pública, situações, nas quais, o magistrado sentenciante irá analisar se a conduta praticada é compatível ou não com a sua permanência nos quadros da Administração.
Todavia, indaga-se no momento da prática do crime o agente delituoso ainda não exercesse cargo, emprego ou função pública, o disposto no art. 92 do CP poderá lhe alcançar. Exemplificando, "a" é denunciado pela prática do crime de homicídio (artigo 121, CP) e, durante a tramitação da ação penal, ele é aprovado em um concurso público. Mesmo que ele seja posteriormente condenado a pena superior a quatro anos de reclusão, a sentença condenatória poderá impor a ele a perda de cargo, que, como dito, não era ocupado no momento da prática da infração penal?
Com as mais respeitosas vênias, referida hipótese não encontra amparo em nosso ordenamento jurídico, não se admitindo, na espécie, interpretação analógica ou extensiva da norma contra o réu.
Com efeito, o funcionário público poderá ser punido com a perda de seu cargo quando condenado à pena privativa de liberdade igual ou superior a 1 ano, se o crime for com "violação de deveres que a sua condição de funcionário impõe", ou quando condenado por crime comum, se a reprimenda aplicada for superior a quatro anos, entretanto, em ambas as hipóteses, é indispensável que o condenado já se encontre nos quadros da Administração Pública na data da prática da infração penal.
Isto porque, os efeitos extrapenais de uma sentença penal condenatória não podem alcançar situações distintas e supervenientes àquelas existentes na época da prática dos fatos delituosos, isto é, a perda do cargo público de um servidor que, antes de sua aprovação no certame, tenha praticado um delito.
Mutatis mutandis, "exige-se que o legislador esgote, em todos os seus elementos, a definição da conduta criminosa, sem deixar para que outras normas secundárias o façam”. “O princípio da legalidade disciplina não apenas a definição de uma conduta criminosa, mas também a espécie, a quantidade e a forma de execução da pena e de qualquer outra medida penal que imponha privação ou restrição de liberdade". "Haverá integração legal e não apenas diversidade de interpretação todas as vezes em que a decisão judicial acrescentar ao enunciado legal outro elemento nele não previsto e nem autorizado pela própria lei mediante o recurso da interpretação analógica" (Fundamentos de teoria do delito, Juarez Tavares. 2ª ed. 2020).
Entender de forma diversa permitirá a criação de uma aberração jurídica, pois, se o ingresso nos quadros da Administração ocorresse depois do trânsito em julgado do édito condenatório, os seus efeitos certamente não atingiriam o acusado, uma vez que, do contrário, conceber-se-á pena de caráter perpétuo, o que é vedado nosso ordenamento.
Não se desconhece, por outro lado, que, como disposto no artigo 78 da Exposição de motivos do Código Penal, a perda do cargo ou da função pública pode igualmente resultar de processo administrativo instaurado contra o servidor, no entanto, o que não se pode consentir é com a perda do cargo ou função pública, independentemente de processo administrativo, se o autor do delito, no momento dos fatos, ainda não o ocupava.
Portanto, não caberia ao magistrado sentenciante apreciar se a manutenção do condenado no cargo ou função pública seria compatível ou não com o exercício de suas atribuições, ou mesmo se haveria conflito com o preconizado pelo Princípio da Continuidade do Serviço Público, mas sim, à própria Administração em sede de processo administrativo, resguardando-se, dessa maneira, a necessária separação das instâncias.
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[1] Esclareça-se que o artigo 327 do CP considera funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública
Diogo Toscano de Oliveira Rebello é advogado.