A Marinha também deve explicações

 Não é só o Exército que tem contratos com fornecedora de software que extrai dados de celulares.

Imagem: Pexels

A Folha publicou na quarta-feira a notícia de que o Exército comprou, sem licitação, um software chamado Cellebrite. Trata-se de uma poderosa ferramenta de investigação que extrai dados e informações de celulares apreendidos. A aquisição, em si, já deveria despertar preocupação. O que querem os militares com uma ferramenta capaz de recuperar conversas apagadas de aparelhos e até dados na nuvem, incluindo dados da Alexa, a assistente virtual da Amazon? À Folha, eles não responderam. 

Se olhada em contexto, a história fica ainda pior. Em 2019, a Marinha assinou um contrato para comprar um treinamento para capacitar militares a operarem o Cellebrite. O Cellebrite Certified Physical Analyst é um curso de três dias que ensina investigadores a recuperarem conteúdos de bases de dados e informações apagadas – enfim, a aproveitarem todo o potencial da ferramenta. 

No ano passado, nosso editor Rafael Moro Martins tentou, via Lei de Acesso à Informação, acesso às cópias dos contratos firmados entre a Marinha e a companhia israelense que desenvolve o Cellebrite. A Marinha negou. Em uma justificativa esdrúxula, alegou que o pedido era "desproporcional". "O atendimento da demanda inviabilizaria a rotina do órgão, já que as informações requeridas exigem o levantamento dos dados por meio de solicitação individualizada a cada uma das Organizações Militares da Marinha, seguida do seu encaminhamento para consolidação, o que demandaria o trabalho de parcela significativa de militares. Esses militares teriam de ser realocados de suas tarefas diárias para o atendimento do pedido, inviabilizando, assim, por período considerável as atividades desenvolvidas", enrolou a força naval.

A resposta deixou claro que ou os militares deliberadamente travaram o acesso a informações públicas com base em uma justificativa mentirosa (no Portal Transparência há apenas um contrato, o que contraria a ideia de "trabalho desproporcional" para buscá-lo), ou há mais contratos que não foram publicitados. 

O  Cellebrite é usado por órgãos de investigação no mundo todo. Com ele, é possível, por exemplo, acessar aparelhos bloqueados, histórico de localização (inclusive de redes wi-fi), registros de chamadas, mensagens, informações apagadas, uso de VPN e até dados de jogos como o Pokémon Go e pedidos à Alexa.  

Por isso, a ferramenta levanta uma série de questionamentos sobre os limites de um inquérito criminal. O Cellebrite permite, por exemplo, acesso a dados na nuvem e conversas que, possivelmente, extrapolam o escopo da investigação. Por exemplo, os dados de pessoas que se relacionaram com o investigado.

Nos últimos anos, o uso da ferramenta explodiu no Brasil – numa coincidência com o governo de Jair Bolsonaro e sua tendência ao tecnoautoritarismo. Desde 2018, foram firmados pelo menos 102 contratos entre a Techbiz Forense Digital, fornecedora da solução israelense no Brasil, com órgãos dos governos federal e dos estados. O valor total deles supera os R$ 100 milhões. Tudo sem licitação, já que a Techbiz vende o Cellebrite com exclusividade por aqui. 

O governo federal tem investido no Cellebrite: o Projeto Excel, firmado em 2019, está equipando polícias civis dos estados com a ferramenta. Em troca, o Ministério da Justiça tem acesso aos dados extraídos dos aparelhos celulares nas investigações feitas pelo país. Só que não há nenhuma transparência sobre quais dados são coletados e quais os termos desse intercâmbio de informações.

Se o uso de uma ferramenta assim por autoridades de investigação como ministérios públicos e polícias já é questionável, pelo Exército e a Marinha é ainda pior. Sob Bolsonaro, as Forças Armadas têm tido um papel estratégico em políticas de inteligência, e até podem designar atividades de repressão criminal, mas apenas em situações pontuais –  caso, por exemplo, das intervenções federais e operações de garantia da lei e da ordem. 

Atividades de inteligência tradicionalmente são muito pouco fiscalizadas no Brasil. Com regras e inclusive um sistema judicial próprios, as Forças Armadas não estão sujeitas como as polícias ao escrutínio do Poder Judiciário e dos ministérios públicos, o que poderia ajudar a proteger os cidadãos de abusos e arbitrariedades. 

Ainda pior, sabe-se que Bolsonaro enxerga as Forças Armadas – principalmente o Exército – como sua polícia política, a ponto de mandá-las se meter até mesmo nas eleições. É uma exacerbação grotesca do papel constitucional delas, mas o ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, se submete docilmente a ela. 

Assim, a notícia da compra do Cellebrite é a face mais visível do processo de transformação das Forças Armadas em aparelhos de investigação permanentes, com objetivos e modo de atuação desconhecidos. E com consequências possivelmente sombrias.

Tatiana Dias/Editora Sênior


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